A Cara da Rua: entre utopias e distopias urbanas – Por Eduardo Vieira da Cunha
Quando escreveu Utopia, o inglês Thomas Morus (1480-1535) imaginou uma forma de governo ideal, que proporcionava as melhores condições de vida a um povo equilibrado e feliz. O livro chamava a atenção para a atualidade política de seu tempo, que quinhentos anos atrás era como hoje, cheia de desigualdade e pobreza.
A utopia nascia, então, como um retrato negativo. Distopia seria o termo usado atualmente como seu espelho, para se referir ao nosso quotidiano. A primeira representaria o ideal, a felicidade, enquanto a segunda, a realidade e a sua sombra, ou seja, uma ameaça constante. O problema era, e ainda é, que o conceito de utopia é lido como algo inatingível, distante, um desejo impossível de alcançar. Ou alcançável somente através da imaginação. Seria esta a função utópica da arte?
A Cara da Rua é um projeto que trabalha com a arte, e vem sendo desenvolvido com moradores em situação de rua em Porto Alegre. Ele trata destas questões antagônicas e complementares, entre utopias e distopias. Através de suas ações, percebe-se onde e quando o ensino da arte e estética pode sair de sua postura egocêntrica e individual e de usofruto solitário, para se transformar em um gesto ético, de generosidade em nome da cidadania, buscando uma sociedade com oportunidades iguais. Ele atua neste momento crítico, onde a harmonia da vida na cidade exige que se conceda prioridade à ética. A Cara da Rua comprova, em seus resultados, que a estética não é necessariamente excludente nesta relação de trocas e de intersecções.
No projeto, são distribuídas câmeras fotográficas para alunos sem domicílio fixo, que frequentam a Escola EPA – EMEF de Porto Alegre, voltada para a educação de jovens adultos. O objetivo é a confecção de cartões postais, vendidos pelos próprios autores como uma forma alternativa de geração de renda.
O resultado é surpreendente. As fotos obtidas pelo grupo nos fazem pensar onde e quando, em uma fotografia, há sinais de uma perda, assim como também há uma denúncia destas ausências e destas faltas, e a esperança da integração pela hospitalidade. Como em uma fábula contemporânea, pessoas que perderam suas referências, como a família e a casa, descobrem a arte como uma forma de integração e recuperação da autoestima. Alguns destes participantes se revelaram artistas em potencial, capazes de transformar a perda em elemento catalisador da expressão.
São estes sinais que nos fazem pensar sobre o tempo, sobre o grupo, sobre a cidadania, entre ética e estética, e sobre a atualidade dos conceitos de utopia e de distopia em nossa cidade nos dias de hoje.
Eduardo Vieira da Cunha é artista plástico e professor do Instituto de Artes da UFRGS
ecunha@cpovo.net
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