Força feminina para combater a violência contra a mulher

A editoria Mulheres no poder mostra a luta de Gabriela Manssur, promotora de Justiça do Estado de São Paulo, para enfrentar o machismo estrutural e encorajar mulheres a denunciar ataques físicos e morais. Ela constatou que os casos de sequestro, ameaça e todo tipo de violência psicológica explodiram durante a pandemia de Covid-19, quando mulheres ficaram confinadas em casa com seus agressores. Para combater esse mal, nasceu o Projeto Justiceiras – uma organização independente de governos que conecta mulheres de todo o mundo e oferece apoio multidisciplinar on-line para as vítimas. Em um ano e seis meses, o Justiceiras já conta com um exército de oito mil voluntárias entre advogadas, assistentes sociais, psicólogas, médicas e rede de apoio em 19 países. Confira a matéria (link) e a entrevista abaixo (exclusiva no site) concedida à repórter Patrícia Lima.

Entrevista

Revista Voto – No início da pandemia a senhora tirou do papel o que diz ser um antigo sonho, que é o projeto Justiceiras, uma rede de acolhimento e ação para reduzir a violência contra a mulher. Qual foi o contexto em que o projeto se tornou realidade?

Gabriela Manssur – O projeto Justiceiras nada mais é do que um canal que ampliou o acesso da mulher que sofre violência ao sistema de justiça, além de oferecer apoio multidisciplinar on-line para as vítimas e conectar mulheres de todo o Brasil e do mundo. Era algo extremamente necessário, óbvio, mas que ninguém enxergava. As pessoas se preocupam muito em desenvolver projetos mirabolantes e se esquecem do básico. Eu penso no básico: se temos uma subnotificação em torno de 50% de casos de violência contra mulher, temos que criar mecanismos para diminuir esse índice. E nada mais concreto e rápido do que ampliar canais para que as mulheres possam pedir ajuda e se sentirem seguras e acolhidas. Por isso que deu tão certo. Criamos o Justiceiras de forma totalmente despretensiosa. Hoje, não existe no mundo instituição, órgão público ou empresa que possua oito mil mulheres especialistas, treinadas e comprometidas ajudando outras mulheres. É um verdadeiro exército feminino. Recebo mensagens diariamente das voluntárias justiceiras agradecendo a oportunidade de participar. Percebo muitas vezes que as próprias voluntárias foram vítimas de violência e por meio desse trabalho, conseguem se resgatar e fortalecer a autoestima, o que é indispensável para a prevenção da violência. Uma mulher independente financeiramente e fortalecida emocionalmente, com boa autoestima e realizada, não tolera comportamentos violentos e relacionamentos abusivos. Elas estão atentas aos sinais de risco e rompem rapidamente esses relacionamentos, prevenindo o que pode terminar em feminicídio. As próprias mulheres são suas maiores protetoras. Antes da materialização do Justiceiras eu era um “180” ambulante, recebia muitos pedidos de ajuda nas redes sociais, no e-mail, no WhatsApp e na própria promotoria. Com um chip de celular e uma rede de amigas surgiu então o Justiceiras para promover acolhimento, respeito e informação. Somos um coletivo de encorajamento feminino.

Revista Voto – Já se pode contabilizar os principais resultados do projeto até agora? E os próximos passos?

Gabriela Manssur – Sim, atualmente são mais de sete mil vítimas atendidas e referenciadas nos órgãos competentes. São quase oito mil voluntárias entre advogadas, assistentes sociais, psicólogas, médicas e rede de apoio. Estamos em 19 países. Temos um relatório mensal com a métrica dos atendimentos e recortes necessários para fornecer documentação robusta às autoridades, para fomentar políticas públicas efetivas para o direito das mulheres. O Justiceiras com um ano e seis meses tem um legado lindo de esperança, e, principalmente, de atitude da sociedade civil. Apoiamos dois projetos de lei: a lei que tipificou a violência política contra as mulheres (Lei 14.192/21) e a PL 2320/2021, que coloca o Terceiro Setor como ator oficial na rede de proteção e enfrentamento à violência contra a mulher. Recentemente, ganhamos o prêmio Respeito e Diversidade do Conselho Nacional do Ministério Público, na categoria Sociedade. Também inauguramos um braço do Justiceiras que é o projeto Políticas de Saia, outro sonho meu, em que vamos incentivar mais mulheres a ocuparem espaços políticos. Também vamos apurar os crimes contra as mulheres no âmbito político. Lugar de mulher é onde ela quiser, inclusive na política. Nosso próximo passo é realizar uma pesquisa entre candidatas e eleitoras no sentido de estruturar o porquê de as mulheres serem 52% da população brasileira e ocuparem apenas 15% dos assentos na Câmara e 12% no Senado.

Revista Voto – Segundo dados oficiais recolhidos com o Disque 100 e ligue 180, uma mulher sofre violência a cada cinco minutos no Brasil. Por outro lado, temos uma legislação específica, que completou 15 anos, a Lei Maria da Penha. Na sua opinião, o que falta para coibir a violência contra a mulher no país?

Gabriela Manssur – É uma lei importantíssima, a terceira legislação mais bem avaliada no mundo, um marco dos direitos das mulheres. E as organizações não governamentais foram essenciais para a aprovação desta lei. São mecanismos interdisciplinares que asseguram a proteção da vítima em situação de violência e permeiam outros direitos das mulheres. A Lei Maria da Penha fala de um aspecto muito importante que é legitimar a voz das mulheres. A popularidade da Lei Maria da Penha atinge todas as mulheres brasileiras, independentemente de classe, de nível intelectual, nível social, de cor, religião, de orientação sexual. Quebrando estereótipos de gênero para que a mulher seja exatamente aquilo que ela quer, para que esteja exatamente onde quer estar. O Fórum de Segurança Pública de 2020 constatou o aumento dos feminicídios: 649 mortes pela condição de sexo feminino, um aumento de 2% nas mortes em relação a 2019. A pandemia intensificou a violência contra a mulher: apesar da subnotificação, o Fórum demonstrou que caíram 9,6% as denúncias nas delegacias no primeiro semestre de 2020, o que não reflete o aumento dos feminicídios. Esse é meu ponto de alerta na escalada do feminicídio e nos próprios desdobramentos da Lei Maria da Penha: as mulheres são revitimizadas da porta das delegacias e nas audiências. É preciso reconhecer que o acolhimento das vítimas melhorou, mas temos que melhorar muito mais. Se aplicada de modo transversal, a Lei Maria da Penha que é uma ótima legislação. O nosso maior desafio é aplicá-la concretamente. Essa eficiência abarca desde o atendimento das vítimas nas delegacias até o respeito às 48 horas para decretação das medidas protetivas. Um dos maiores obstáculos à correta aplicação da lei é a precariedade no aparelhamento dos órgãos nas esferas públicas. Precisamos de uma rede interdisciplinar fortalecida para que a mulher consiga pedir ajuda com dignidade, sem ser julgada ou mal atendida. Faltam vagas nas Casas Abrigos, nos atendimentos psicossociais, há também a demora para realização das audiências. Assim, humanizar o trato com a violência contra mulher é o pressuposto do sucesso da Lei Maria da Penha, que na sua técnica é brilhante. O projeto Justiceiras é um sucesso justamente pelo trabalho interdisciplinar e pela aplicação transversal da Lei Maria da Penha. Para se ter ideia, não tivemos nenhum feminicídio em um ano e seis meses. Evoluímos bastante, mas precisamos de mais, muito mais, porque os casos de feminicídio não diminuem, estão aí todos os dias nos jornais. É muito triste. Mas não vamos desistir: conscientizar, prevenir, combater a violência. Quem salva uma, salva todas!

Revista Voto – Mulheres negras, de baixa escolaridade e que vivem nas periferias são as principais vítimas de agressão e feminicídio, segundo as estatísticas. Mas a verdade é que todas as mulheres, mesmo as de classe mais alta, estão sujeitas à violência doméstica e aos abusos. Como a senhora atua para ajudar mulheres neste amplo espectro social?

Gabriela Manssur – Nós temos uma atuação específica para atingir todas as camadas da sociedade e mulheres de todas as origens. Identificamos em vários municípios e nas capitais mulheres que atuam como lideranças locais, pois são conhecidas pela sua articulação e pelo trabalho desenvolvido naquela região, e a partir dessas lideranças fazemos a conexão com todas as mulheres daquela localidade. Temos lideranças indígenas, negras, mulheres trans e conseguimos fazer com que o nosso projeto chegue ao conhecimento de todas. Nós temos também lideranças idosas, meninas, adolescentes, mulheres com deficiência e mulheres em situação de extrema vulnerabilidade. Até mulheres de rua já pediram ajuda para o projeto justiceiras. O nosso objetivo é alcançar cada vez mais meninas e mulheres e em breve faremos um trabalho para também alcançar as mulheres que estão nas penitenciárias. De acordo com nosso último relatório, 12,4% das vítimas são mulheres negras, 34,12% são pardas, 2.873 estão desempregadas. O recorte racial também é importantíssimo, uma vez que, infelizmente, as mulheres negras ainda possuem acesso restrito a informação e à justiça. De acordo com o IBGE, 63% das casas chefiadas por mulheres negras estão abaixo da linha da pobreza. Atualmente estruturamos o núcleo das mulheres negras no Justiceiras. Por isso, o projeto tem esse diferencial de ser inteiramente online e funcionar por meio de grupos de trabalho no WhatsApp, ou seja, somos acessíveis e democráticas. Acolher e propagar iniciativas de combate e prevenção à violência idealizadas por mulheres em todo o Brasil, de Norte a Sul, é nossa missão enquanto coletivo. Voltando à análise, é interessante que 3.094 mulheres solicitaram seu primeiro pedido de ajuda por meio do Justiceiras, num universo de 7.517 respostas aos pedidos. Essa estatística já responde o comprometimento do coletivo em humanizar o atender, o acolher e o orientar vítimas de todas as classes sociais, cores e credos, quando estão mais vulneráveis. A violência contra a mulher nasce em uma cultura patriarcal que transcende os aspectos sociais: o agressor enxerga a mulher como sua propriedade. Parece banal falarmos tanto em patriarcado, em sentimento de posse. Mas essas são atitudes do nosso dia a dia, que naturalizamos e perpetuamos. Assim, entender o patriarcado é o cerne para entender o porquê somos o 5º país que mais mata mulher no mundo. Nas classes mais altas, a maior dificuldade é justamente a denúncia: mulheres independentes financeiramente, mas dependentes emocionalmente de agressores manipuladores e vis ficam envergonhadas e não denunciam para não sofrerem julgamentos pela sociedade e familiares.

Revista Voto – Diante dos horrores da violência e dos abusos físicos, a violência psicológica costuma ficar em segundo plano, algo que a senhora sempre lutou para mudar. Como a legislação trata da violência psicológica e de que forma as agressões verbais podem minar a independência e a personalidade das mulheres?

Gabriela Manssur – Recentemente, em agosto tivemos uma grande vitória, a violência psicológica finalmente foi tipificada como crime na Lei 14.188/21, com pena de reclusão. A violência psicológica inclui xingamentos e agressões verbais e são o início da escalada do ciclo violento até o crime de feminicídio. No projeto Justiceiras, por exemplo, 80% dos pedidos de ajuda são sobre a violência psicológica. É uma conduta que se inicia de modo sutil, mas que vai minando a autoestima da mulher, a vontade de viver e produzir. O “dano emocional” como está previsto no tipo penal, é muito sério sim, temos que desmistificar esse olhar de que constrangimentos, controle, perseguição é amor ou cuidado. Relembro: o Brasil é o quinto país que mais mata mulher, e o crime de feminicídio é um crime evitável. A sociedade precisa entender que a violência é uma questão de saúde pública, que onera os cofres públicos e destrói famílias. A compreensão do ciclo da violência que se inicia pela violência psicológica salva muitas vidas.

Revista Voto – Uma das suas lutas foi desenvolver mecanismos para ressocializar os agressores. Qual o papel dos homens no combate à violência contra as mulheres?

Gabriela Manssur – Eu idealizei o projeto Tempo de Despertar a partir de um projeto magnífico da promotora de justiça do Rio Grande do Norte, Érica Canuto, que consiste na ressocialização e grupos reflexivos de homens autores de violência doméstica e familiar contra a mulher. A iniciativa se transformou em várias leis, incluindo a Lei 13.984/2020, que acrescentou duas novas medidas protetivas de urgência, inserindo dois novos incisos ao artigo 22 da Lei Maria da Penha, tratando da ressocialização dos agressores. O projeto demonstrou muita eficácia com apenas 2% de reincidência nos casos de violência contra a mulher. O diálogo com toda sociedade, a compreensão dos homens sobre os direitos das mulheres é o que precisamos para um mundo mais seguro e justo para meninas e mulheres. Nossa intenção é implementar o projeto Tempo de Despertar em todo território nacional, para que todas as varas e promotorias de justiça de enfrentamento à violência doméstica e familiar contra mulher tenham essa política pública para oferecer aos homens agressores, uma vez que o resultado é extremamente positivo e, no meu entendimento, é uma das melhores formas de prevenção ao feminicídio. De fato, o ciclo da violência não pode ser rompido apenas do lado da mulher. O homem também tem que parar de cometer atos de violência, tem que respeitar as medidas protetivas, tem que entender que o que ele está fazendo é crime e tem uma responsabilização. Ele precisa ter a oportunidade de mudança do padrão comportamental baseado no machismo estrutural. Estamos em conversas com o Ministério das Mulheres para a implementação de um projeto piloto que possa ser acessado por todo o sistema de justiça, encaminhando os homens agressores aos grupos reflexivos. Recentemente, o Ouvidor Nacional do Ministério Público, doutor Oswaldo de Albuquerque, apresentou no plenário do Conselho Nacional do Ministério Público uma proposta de recomendação para que todas as unidades e ramos do Ministério Público que atuem no combate à violência contra mulher e possuam promotorias especializadas, implementem projetos de ressocialização do agressor. Será um grande avanço, pois é um dos principais passos para a diminuição da violência contra mulher.

Revista Voto – Casos de constrangimento e violência psicológica são comuns nos ambientes de trabalho. A senhora já disse que as empresas precisam ter um código de conduta para prevenir violência e assédio e conscientizar as mulheres para que façam a denúncia. Qual é a importância de as empresas incluírem essa causa nos seus manuais de boas práticas e em suas políticas de recursos humanos e compliance?

Gabriela Manssur – Todas as empresas precisam ter uma perspectiva de gênero no exercício de suas atividades. Isso significa que elas devem investir em canais de denúncia internos, em parcerias com entidades públicas e privadas para o recebimento e tratamento das denúncias, além do encaminhamento para as autoridades competentes. Devem investir na conscientização dos colaboradores, bem como viabilizar campanhas publicitárias de informação a toda sociedade. Isso significa que a empresa investe em lucro ético, demonstrando responsabilidade social e valor agregado. Não dá para as empresas fecharem os olhos frente à violência contra mulher, sendo que 53% do mercado de trabalho é exercido pelas mulheres e um terço dessas mulheres sofre algum tipo de violência. Ademais, caso a empresa não invista na prevenção e combate à violência contra mulher, ela terá além de um prejuízo moral, um prejuízo financeiro, já que as mulheres faltam 18 dias por ano ao trabalho por conta da violência doméstica, ou pedem demissão, ou são mandadas embora, voltando para os braços do agressor e perdendo a sua autonomia financeira, colocando toda a família em situação de pobreza e vulnerabilidade. As empresas têm sido grandes aliadas no combate à violência contra a mulher com iniciativas importantíssimas e capacitação inclusive da equipe do RH para lidar com a temática sobre violência contra a mulher. Toda a sociedade brasileira, incluindo terceiro setor, iniciativa privada e poder público devem dar as mãos para combater esse grande problema de saúde e de segurança pública que é a violência contra a mulher. A inclusão no RH ou no compliance de políticas de prevenção e combate ao assédio é imprescindível. O assédio não pode ser banalizado ou visto pelas pessoas como uma conduta normal ou aceitável. Assédio não é aceitável. Os dados não mentem: as mulheres são as mais afetadas pelo assédio moral e sexual. O projeto Justiceiras atualmente oferece essa oportunidade de compliance no condizente à responsabilidade social focada no direito das mulheres.

Revista Voto – Em tempos de polarização, declarar-se feminista pode parecer adesão a determinada posição política – algo que a senhora costuma rebater. O que é ser feminista, na sua definição?

Gabriela Manssur – O meu feminismo é o feminismo da Gabriela, não é seletivo, é inclusivo. Reúne conquistas da esquerda e da direita, luta por direitos das mulheres, união, aprendizado, respeito e avanços. Todas por uma, uma por todas. O meu feminismo se resume a três palavras: Mulheres, Liberdade, Respeito. Eu respeito, reconheço, agradeço e parabenizo todos os dias a luta e as conquistas das mulheres de esquerda e o quanto elas nos abriram portas e nos ensinam. Isso é incontestável. Mas você já parou para pensar o quanto as mulheres da bancada feminina da Direita já lutaram para estarem lá? Quantas leis elas já aprovaram em nosso benefício? Quanto preconceito e discriminação elas sofreram para se candidatarem, fazer campanha e serem eleitas? E mesmo no exercício do mandato, são atacadas violentamente na sua honra, moral e intimidade. Isso não é ser feminista? Elas não merecem respeito? A lei não vale para elas? Eu não posso acolhê-las e protegê-las? Desculpem, não concordo e não aceito. Continuarei dialogando, me conectando e lutando por todas. Tenho carinho e respeito pela ex-presidente Dilma, assim como tenho pela ministra Damares Alves; tenho grandes amigas e parceiras de esquerda, como tenho de direita. Qual é o problema? Aliás, você precisa dialogar com quem pensa diferentemente de você e não ficar repetindo o discurso para quem já o conhece de cor e concorda com ele. Isso é importante até para eu rever posicionamentos se necessário. Não tenho nenhum compromisso com meus posicionamentos, meu compromisso é com o Direito, a dignidade, com a ética e com a sociedade. Se eu não tiver liberdade para ser a mulher que eu quiser ser e se as minhas escolhas não forem respeitadas, fica totalmente sem sentido, pelo menos para mim. Meu maior desafio é conseguir descolar o feminismo da esquerda e aproximá-lo da direita, formando uma grande conexão feminina feminista, reunindo mulheres de todas as classes sociais, idades, cor, origem, religião, ideologia política e orientação sexual com um único objetivo: promoção e defesa dos direitos de todas as mulheres. Eu vou conseguir! Ser feminista enquanto promotora de justiça é atuar de fato na promoção e defesa dos direitos das mulheres. Há 20 anos trabalho pelos direitos das mulheres e por todas as questões concretas que silenciam, inibem, cerceiam as potencialidades do feminino. Ser feminista enquanto “Gabriela mulher” é respeitar outras mulheres, é apoiá-las e compreendê-las, mesmo que pensem diferente. É encorajá-las por uma causa maior, pelos direitos que fomos conquistando com tanto esmero e suor. Deslegitimar uma mulher porque ela pensa diferente de mim é um retrocesso a todo o engenhoso percurso que nós mulheres percorremos e percorreremos. Ser feminista é inclusão, acolhimento e diálogo com todas as frentes, afinal temos o feminismo liberal, o feminismo marxista, o feminismo anarquista, o feminismo negro, o feminismo interseccional e o feminismo radical. Mas isso é uma conversa para outra entrevista. Como diz a precursora do feminismo, Simone Beauvoir: “Querer ser livre é também querer livres os outros”.

Revista Voto – Como a senhora vê a participação das mulheres na política? Mais mulheres em posição de poder e decisão podem construir uma sociedade menos machista e mais igualitária, na sua opinião?

Gabriela Manssur – Com certeza, mais mulheres na política são mais políticas públicas e leis instrumentalizadas com o olhar de gênero. A representatividade feminina é a nossa chave mestra para inspirar as gerações vindouras e transformar a perspectiva social sobre o machismo e a violência, que estão diretamente interligados. A primeira lei eleitoral realmente brasileira foi redigida apenas em 1824, após a independência. Desta primeira legislação até o Código Eleitoral Brasileiro de 1932, as mulheres estavam excluídas do sufrágio universal. Não podiam votar e nem ser votadas. De lá para cá o avanço dos direitos eleitorais das mulheres e a inserção delas, de fato, na vida política pública veio sendo construída paulatinamente, com avanços e retrocessos ao longo do século 20 e que ganha contornos e garantias de equidade apenas com a Constituição de 1988, mas que ainda assim era uma garantia formal e não uma igualdade material. Para termos uma ideia, na composição atual da Câmara dos Deputados, apenas 77 cadeiras de um universo de 513 são ocupadas por mulheres, 15% da representatividade legislativa nacional, quando as mulheres representam 52% da população. No Senado não é diferente, são 12 senadoras em uma Casa com 81 parlamentares. A partir de 2009 obtivemos importantes avanços com a instituição das quotas de gênero, que exigem porcentagem mínimas de candidatas mulheres em partidos e coligações, além de uma participação equivalente no acesso aos recursos eleitorais. Mesmo assim, precisamos estar sempre em estado de alerta, pois dados recentes demonstram que os trinta por cento previstos na cota de gênero não garantem, proporcionalmente, cadeiras do Congresso Nacional, Assembleias Legislativas e Câmara dos Vereadores. O que ainda precisamos fazer para alcançar a tão almejada equidade de gênero na política? Quem pensa que a afirmação “as mulheres não querem” é verdadeira, se engana. O que elas não querem é sofrer violação aos seus direitos, ainda mais quando não existe legislação específica sobre o tema, como se tal situação fosse naturalizada e aceita pela população, restando às mulheres que se arriscam na vida política a sensação de impunidade e a submissão injusta e sem direito à defesa, ao julgamento de parte da sociedade que, infelizmente, ainda se identifica com a figura da “bela, recatada e do lar”. Um dos principais fatores que impede as mulheres de se lançarem no pleito eleitoral é a violência política de gênero, motivada pela discriminação e preconceito. No Brasil, dois casos emblemáticos e recentes são exemplos típicos de violência política de gênero: o feminicídio político da vereadora do Rio de Janeiro, Mariele Franco, assassinada pela sua atuação, crime que até os dias de hoje não está solucionado; e a ameaça de feminicídio político à prefeita baiana Eliana Gonzaga (Cachoeira – BA), que recebeu ligações com barulho de rajadas de tiros, depois de dois de seus colegas de campanha terem sido assassinados entre o final de 2020 e março de 2021. Recentemente, chamou atenção o número de mulheres com atuação político-partidária e ocupantes de cargos no Legislativo e no Executivo que foram ofendidas na sua honra, na sua moral, interrompidas e silenciadas na sua fala, invisibilizadas em importantes espaços políticos, expostas publicamente sobre sua vida pessoal e violentadas na sua dignidade sexual, atos inequívocos de ameaça e lesão ao direito à liberdade, à intimidade, à saúde, à segurança e à vida. A violência política de gênero envergonha, silencia, adoece, intimida, torna invisíveis mulheres de todo Brasil, impedindo-as de exercerem seus direitos políticos. Mariele Franco, Eliana Gonzaga, Dilma Rousseff, Damares Alves, Manuela d´Avila, Joice Hasselmann, Carla Zambelli, Tabata Amaral, Isa Penna, entre outras, já foram vítimas. Não importa ser de direita ou esquerda, a violência política contra as mulheres pode atingir qualquer uma, pois não tem como motivação nem a ideologia política, o partido, a religião, a classe social, mas sim o fato de serem mulheres. Mas o jogo está virando. A criação da Ouvidoria das Mulheres nos âmbitos do Conselho Nacional do Ministério Público e do Tribunal Regional Eleitoral de Goiás, canal especializado para recebimento de denúncias sobre lesão aos direitos políticos das mulheres, especialmente contra as eleitoras e futuras candidatas, é iniciativa que deve ser enaltecida e replicada em todo o Brasil, pois amplia o acesso ao Sistema de Justiça, assegura escuta qualificada, acolhimento e encaminhamento para providências legais. O combate à violência política colabora para o fortalecimento das mulheres na política, não apenas no âmbito eleitoral, mas também em todos os cargos de poder e direção ocupados por mulheres. Nosso trabalho seguirá para assegurar não só a igualdade de gênero na política, mas em todas as esferas de poder e construir assim um futuro realmente democrático, já que o lugar de mulher é onde ela quiser, mas se ela sofre violência, não vai a lugar nenhum.

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